Revisão do MVBER: Em defesa do aftermarket!

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A decisão da Comissão Europeia de prorrogar o MVBER até 2028 garante, por agora, a continuidade das regras que sustentam a liberdade de escolha dos consumidores e a sobrevivência de milhares de oficinas e empresas independentes do pós-venda. No entanto, a avaliação em curso evidencia que as mudanças tecnológicas — em especial a digitalização e a conectividade dos veículos — colocam novos desafios à concorrência e ao direito de reparar

A revisão do Regulamento de Isenção por Categoria dos Veículos a Motor (MVBER, na sigla em inglês) reacendeu um debate fundamental sobre o equilíbrio entre inovação tecnológica, sustentabilidade e concorrência no mercado automóvel europeu. Desde a sua criação, o MVBER tem sido essencial para assegurar um mercado pós-venda automóvel competitivo. O regulamento permite que fabricantes e operadores independentes cooperem em certas condições, sem infringir as regras antitrust da União Europeia, garantindo que o consumidor possa escolher onde reparar o seu veículo sem perder a garantia. 
Graças a este enquadramento, o setor automóvel europeu desenvolveu um ecossistema dinâmico de oficinas independentes, distribuidores de peças e prestadores de serviços de manutenção. Esta diversidade assegura preços mais acessíveis, inovação local e liberdade para os consumidores.

Contudo, a digitalização acelerada dos automóveis ameaça alterar este equilíbrio. Com a crescente dependência de software e dados telemáticos, os fabricantes (OEMs) passam a deter um poder inédito sobre o funcionamento e a reparação dos veículos. O controlo do acesso às plataformas digitais, diagnósticos eletrónicos e atualizações de software cria barreiras à entrada de operadores independentes, colocando em risco a concorrência e, com ela, o direito de reparar a custos justos.

Dados e telemática: o novo campo de batalha
O maior ponto de tensão da revisão do MVBER está no acesso aos dados dos veículos. Sem uma partilha equitativa das informações telemáticas, oficinas independentes ficam impedidas de diagnosticar ou reparar automóveis modernos, que dependem de atualizações digitais contínuas. 
Diversas associações europeias do setor aftermarket alertam que, se as reformas não enfrentarem firmemente essa questão, o mercado tornar-se-á “cativo”, beneficiando apenas os fabricantes que controlam software, peças e dados. A entrada em vigor da Lei dos Dados da UE, em setembro de 2025, é um marco positivo, mas ainda insuficiente. O texto garante aos utilizadores direitos sobre os dados gerados pelos dispositivos conectados — incluindo automóveis — e permite que esses dados sejam partilhados com terceiros. No entanto, o sucesso dependerá da aplicação prática e da fiscalização efetiva nos Estados-Membros.

Sem uma implementação robusta e harmonizada, o risco é que o direito à reparação digital permaneça apenas no papel. A transparência e o acesso aos dados são vitais para garantir que as oficinas independentes possam continuar a oferecer serviços competitivos, inovadores e sustentáveis.

Direito à reparação e sustentabilidade
Os veículos são há muito considerados uma boa prática em termos de reparabilidade. Isto não é uma coincidência, mas sim o resultado de regulamentação forte e favorável ao consumidor, como o Regulamento MVBER, que garante condições equitativas e uma concorrência leal entre fabricantes e empresas independentes do mercado pós-venda. No entanto, com a evolução da tecnologia e dos mercados, esta reparabilidade está em declínio. O aumento da complexidade eletrónica, a integração de componentes selados e as práticas de conceção não desmontável estão a reduzir a capacidade de reparar e prolongar a vida útil dos automóveis.
 Essa perda tem impactos profundos: encarece as reparações, acelera a substituição prematura de veículos e eleva os custos das seguradoras, que acabam repassando aumentos aos consumidores. Além disso, afeta a sustentabilidade — cada veículo não reparável representa desperdício de recursos e aumento da pressão sobre matérias-primas críticas, como as usadas em baterias de veículos elétricos (BEV).

Garantir a reparabilidade é, portanto, uma questão não apenas económica, mas também ambiental e social. Prolongar a vida útil dos automóveis reduz a necessidade de extração de recursos, apoia a economia circular e fortalece a autonomia europeia face às importações de materiais estratégicos.

O desafio das baterias dos VE
Entre os temas mais sensíveis da revisão do MVBER está a reparabilidade das baterias dos veículos elétricos. Este componente representa até 40% do valor total de um BEV e concentra grande parte da sua pegada ambiental. 
Alguns fabricantes começaram a adotar práticas que dificultam a desmontagem e substituição dos módulos de bateria, como o uso de resinas e materiais selantes que impedem o acesso interno. Estas escolhas técnicas, além de aumentar custos e resíduos, ameaçam criar um monopólio de facto sobre a manutenção de veículos elétricos. Para evitar tal cenário, especialistas defendem que o regulamento europeu vá além da mera “substituibilidade” e estabeleça a reparabilidade obrigatória das baterias, assegurando que módulos possam ser trocados ou recondicionados individualmente. Essa medida reduziria custos, incentivaria a remanufatura e mitigaria o impacto ambiental da mobilidade elétrica.

Peças sobressalentes e práticas de design
Outro ponto crucial é a disponibilidade de peças sobressalentes. Embora a maioria dos fabricantes europeus mantenha o fornecimento por cerca de 10 anos, não há exigência legal mínima na União Europeia. Isso permite que alguns produtores, sobretudo não europeus, negligenciem o serviço pós-venda ou imponham prazos de entrega excessivos. 
Especialistas propõem que a nova regulamentação estabeleça um período mínimo de 20 anos de disponibilidade de peças, a preços justos e não discriminatórios, incluindo para operadores independentes.

Além disso, é necessário combater práticas de design que inviabilizam a reparação, como o giga-casting, que substitui centenas de peças desmontáveis por grandes blocos fundidos. Essa técnica, embora eficiente em produção, impede a substituição parcial de componentes e ameaça o futuro das oficinas e remanufaturadores europeus.

A legislação deve assegurar que todas as peças sejam reparáveis, substituíveis e removíveis, inclusive após o fim da vida útil do veículo. Prazos máximos de substituição e critérios de desmontagem devem ser definidos para peças essenciais, reforçando a eficiência e a segurança das reparações.

Atualizações de software: o novo óleo do motor
Se no passado o acesso às peças era a chave da reparação, hoje o verdadeiro “óleo do motor” é o software. À medida que os veículos se tornam computadores sobre rodas, a sua funcionalidade depende de atualizações regulares. Interromper esse suporte equivale a decretar a obsolescência do veículo, mesmo que o hardware esteja em perfeitas condições.

Por isso, propõe-se que as atualizações de software sejam garantidas por pelo menos 20 anos após a colocação no mercado, equiparando-se à vida média dos automóveis europeus. Essa exigência, inspirada no Regulamento Europeu de Ecodesign para dispositivos eletrónicos, garantiria que os consumidores não sejam forçados a substituir veículos por simples falta de compatibilidade digital.

Combate às práticas anti-reparação
As chamadas práticas anti-reparação tornaram-se um dos maiores obstáculos à concorrência. Técnicas de hardware ou software que bloqueiam a substituição de peças, exigem ferramentas especiais ou impedem o uso de componentes equivalentes, criam um monopólio de facto.
 A proposta em debate sugere proibir explicitamente qualquer mecanismo — contratual, digital ou técnico — que impeça a reparação independente. Oficinas deveriam poder reprogramar peças, dissociá-las do número de chassis (VIN) e reutilizá-las noutros veículos, desde que respeitem as normas de segurança e rastreabilidade. Essa interoperabilidade é crucial para assegurar um mercado justo e para reduzir o desperdício, permitindo a reutilização de componentes em boas condições.

Transparência e informação técnica
Outro pilar da revisão é o acesso à informação técnica. O artigo 11.º da proposta europeia prevê que dados de reparação, recondicionamento e remanufatura sejam acessíveis gratuitamente por pelo menos 20 anos após o fim da produção.
 O objetivo é garantir que oficinas independentes tenham acesso igualitário às instruções e diagnósticos necessários. Especial atenção deve ser dada aos componentes eletrónicos, cuja reparação depende fortemente de dados de software e calibração. Além disso, propõe-se a criação de uma pontuação de reparabilidade para veículos elétricos, ajudando consumidores a fazer escolhas informadas e estimulando os fabricantes a adotar práticas mais sustentáveis. Contudo, o índice só será útil se diferenciar claramente os melhores desempenhos e não recompensar o mero cumprimento dos requisitos mínimos.

Novas regras para veículos em fim de vida
A recente aprovação, pelo Parlamento Europeu, das novas exigências para veículos em fim de vida (VFV) reforça o compromisso com a economia circular. O novo regulamento amplia o foco da legislação para o design, recolha, remanufatura e reutilização de componentes, incorporando avanços importantes.
 Entre as melhorias destacam-se a definição mais clara dos operadores de reparação e manutenção, o reconhecimento da remanufatura como atividade essencial e o acesso obrigatório à informação técnica. Também foram introduzidos novos critérios para evitar que veículos reparáveis sejam prematuramente classificados como sucata. Estas medidas complementam o espírito do MVBER, promovendo uma transição para um setor automóvel mais sustentável, competitivo e tecnologicamente neutro.

Um equilíbrio delicado
O desafio da revisão do MVBER é equilibrar interesses legítimos: proteger a inovação dos fabricantes sem sacrificar a concorrência, o meio ambiente e os direitos dos consumidores.
 O direito de reparar um automóvel a preço acessível é uma conquista social e económica que não pode ser perdida. Manter um ecossistema de reparação aberto é vital não só para os consumidores, mas também para a resiliência industrial da Europa. Se o MVBER for atualizado de forma ambiciosa — incorporando as lições da Lei dos Dados e das novas regras sobre circularidade —, poderá garantir que a mobilidade do futuro seja realmente sustentável, acessível e justa. Caso contrário, corre-se o risco de transformar o automóvel conectado num símbolo de dependência tecnológica e de concentração de poder industrial.

Artigo disponível na edição impressa e online da Revista Top100 2025, aqui.